Jake Gyllenhaal interpreta o personagem duplicado em sua segunda colaboração com Dennis Villeneuve (a primeira foi em "Os Suspeitos"). Foto: |
O motivo que me levou a ler o livro - que estava "mofando" no meu Kindle há alguns meses - foi saber que havia uma adaptação cinematográfica para a obra, dirigida pelo grande diretor canadense Denis Villeneuve - cujos dois filmes que assisti achei, um, muito bom - "Os Suspeitos/Prisioners" - e outro, absolutamente genial e impactante - "Incêndios/Incendies".
Villeneuve não caiu no mesmo erro que Fernando Meirelles na adaptação de "Ensaio sobre a Cegueira/Blindness", quando o diretor brasileiro quis praticamente seguir o livro. Se, para mim, Saramago não conseguiu ser dramático em "O Homem Duplicado" (se é que ele quis ser dramático, acho que quis muito mais criticar a inércia que temos à Ordem imposta pela sociedade muito mais por sua ridicularização a Tertuliano), em "Ensaio...", todo o drama e angústia do mundo estão ali.
O diretor canadense parece ter bebido na fonte de outros dois grandes (maiores que ele) diretores: usou o surrealismo do americano David Lynch para justificar a epígrafe da obra literária em seu filme - "O Caos é uma ordem a ser decifrada" - com a estética kafkiana e claustofóbrica do canandense David Cronenberg.
Para mim, o diretor acerta ao eliminar o humor da adaptação e de, com sucesso, concentrar todo o filme na angústia não do que é ter uma pessoa igual a você no mundo, mas sim da angústia de não saber quem é você mesmo. O Tertuliano das telas, o professor de História, tem sua história retratada no início do filme de forma repetitiva, para reforçar o quão medíocre e rotineira é sua vida. E a frase proferida por ele e que se repete é que todas as ditaduras da História tentam ter o controle sobre a situação, seja dando entretenimento ao povo, seja por outras artimanhas.
O filme mostra o personagem principal descobrindo erros em sua própria história e personalidade, que vão se misturando com a de sua "cópia" - o que fica evidente quando sua mãe (Isabella Rosselini!) afirma que ele sempre gostou de blueberries ou quando a esposa da "cópia" pergunta como foi o seu dia na escola (praticamente pistas de defeitos na "Matrix").
A cena final, que causa grande polêmica e é a maior citação à David Lynch no filme, para mim, evidencia a quebra final do mecanismo opressor da sociedade pelo protagonista, encurralando o sistema em um beco sem saída e, finalmente, decifrando a ordem caótica onde, talvez, tudo o que façamos em nossas vidas cotidianas realmente não tenha nenhum sentido. Outra detalhe que corrobora com esta interpretação é o título original em inglês, "Enemy": o inimigo não é o outro, o inimigo está além da compreensão e precisa ser decifrado para ser encurralado e, enfim, derrotado.
Se o argumento e as intenções de Villeneuve e do roteirista Javier Gullón (espanhol) são bastante abertas a interpretações, alguns pontos objetivos e altos do filme são mais claros e (também) para mim, dignos de todos os elogios: a fotografia (Nicolas Bolduc) e a trilha sonora (Danny Bensi e Saunder Jurriaans) merecem concorrer ao Oscar e ajudam a compor um clima absolutamente soturno a este filme desafiador. Assista e leia... quebre um pouco a sua cabeça!
PS: hoje faz quatro anos que Saramago se foi.... mas seus livros estão aí... vamos lê-los (vou começar mais um e depois escrevo sobre ele, sem precisar que haja uma adaptação cinematográfica para me empurrar ao Kindle).